As leituras latino-americanas de Rory em Gilmore Girls

Conheça cinco obras de escritores e escritoras da América Latina que apareceram no seriado
Rory, a leitora voraz de Gilmore Girlsreprodução

339. Longe de ser a resposta para a vida, o universo e tudo mais, esse número cabalístico representa a quantidade de livros que Rory Gilmore foi vista lendo ao longo das sete temporadas da série Gilmore Girls. Nesse universo paralelo que é a minha vida de intercambista, com muito tempo livre e poucos compromissos, ando me dedicando a riscar alguns pontos da lista de “O que eu já deveria ter lido e visto”. Gilmore Girls é um dos itens dessa lista.

A série, exibida originalmente entre 2000 e 2007 (e que, em breve, vai ganhar uma nova temporada na Netflix), acompanha Rory e Lorelai – mãe e filha que compartilham um laço especial de companheirismo, amizade e hábitos alimentares questionáveis regados por cafeína e referências à cultura pop. Já nos primeiros episódios, é impossível não se surpreender – e invejar – as diversas e numerosas leituras da mais jovem das garotas Gilmore. Sempre vista com um – ou, mais especificamente, uns quatro – livros na bolsa, a personagem tem um hábito de leitura impossível de ser batido por meros personagens da vida real como eu e você.

Rory, a leitora voraz de Gilmore Girls Rory, a leitora voraz de Gilmore Girls

quem não ama o cheirinho de um bom livro?

Já antevendo o fracasso, não me animei a fazer nenhuma comparação, mas notei um ponto fraco na relação de obras lidas por Rory (o que inveja não faz, não é mesmo?). Dos mais de trezentos livros lidos ao longo dos sete anos da série, somente cinco são de autores latino-americanos, sendo três obras da mesma autora –  a linda e poderosa Isabel Allende – e nenhum brasileiro. Ora, ora, Rory.

Em defesa da personagem, temos que admitir que todas as obras escolhidas são de muita qualidade – conheça abaixo os cinco representantes da literatura latino-americana vistos em Gilmore Girls:

Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez (1967)

Se Rory tivesse que escolher uma só obra latino-americana, Cem Anos de Solidão seria uma boa escolha. O livro do escritor colombiano, que recebeu o Nobel da Literatura em 1982, é considerado um dos mais importantes da América Latina e de toda a literatura hispânica, atrás apenas de Dom Quixote de la Mancha – obra que também consta na lista de livros lidos de Rory. Um dos fundadores do gênero realismo fantástico e parte do chamado boom latino-americano (movimento literário nos anos 1960 e 1970, quando o trabalho de um grupo de romancistas ganhou notoriedade na Europa e no resto do mundo), Cem anos de solidão constrói a história do nosso sofrido continente por meio da trajetória da família Buendía.

A Casa Dos Espíritos, de Isabel Allende (1982)

Obra de estreia e a mais conhecida da escritora chilena, A Casa Dos Espíritos é uma narrativa maravilhosa, tanto no que se refere à sua qualidade quanto ao gênero em que se encaixa, o realismo fantástico. Neste livro, Allende cria um universo repleto de magia, mas também de realidade – a realidade crua e dura de três gerações de mulheres e de um país. Ao longo da obra, acompanhamos a saga da família Trueba durante praticamente todo o século 20 (1905 – 1975) no cenário turbulento do Chile dessa época. Ao final – tranquilos, sem spoiler – a narrativa se fecha em um ciclo. Não é um fim, é um começo.

Eva Luna, deIsabel Allende (1987)

A protagonista deste que é o terceiro romance de Allende carrega em seu nome a força da “primeira mulher”, aquela que gerou todas as outras, que conserva em si a semente de todas as coisas, como afirma Márcia Hoppe Navarro no artigo A mulher em Eva Luna de Isabel Allende. Assim Eva se define nas primeiras linhas da obra:

Me llamo Eva, que quiere decir vida, según un libro que mi madre consultó para escoger mi nombre. Nací en el último cuarto de una casa sombría y crecí entre muebles antiguos, libros en latín y momias humanas, pero eso no logró hacerme melancólica, porque vine al mundo con un soplo de selva en la memoria.

Chamo-me Eva, que quer dizer vida, segundo um livro que minha mãe consultou para  escolher o meu nome. Nasci no quarto dos fundos de uma casa sombria e cresci entre móveis  antigos, livros em latim e múmias humanas, mas isso não conseguiu tornar-me melancólica,  porque vim ao mundo com um sopro de selva na memória.

Nas páginas que seguem, a personagem narra sua vida e das pessoas que conheceu ao longo da sua caminhada. E, ao contar a história de Eva, Allende conta também a história do Chile e um pouco da história de toda América Latina.

Filha da Fortuna, de Isabel Allende (1999)

Esse é o primeiro romance publicado pela escritora depois da morte da sua filha Paula em 1992 – nesse meio tempo, Allende publicou Cartas A Paula (1994), obra de caráter autobiográfico e marcada pelo gênero epistolar; e Afrodite (1997) que reúne receitas e discorre sobre os poderes afrodisíacos de alimentos e bebidas, em meio a lembranças pessoais, histórias e lendas. Na narrativa de Filha da Fortuna, Allende traz a história de Eliza Sommers, uma jovem inocente chilena que vê seu amor, Joaquin Andieta, partir em busca de fortuna para a Califórnia, em meio à febre do ouro em meados do século 19. Sommers decide viajar à procura de Andieta e inicia uma verdadeira viagem ao inferno, nessa terra sem lei, de homens sós e prostitutas. Para além de uma simples história de amor, Filha da Fortuna relata o amadurecimento dessa jovem e desenha uma personagem profunda e complexa.

Song of the Simple Truth: The Complete Poems of Julia de Burgos, de Julia de Burgos (1997)

Aqui abro espaço para uma certa polêmica geográfica-política-ideológica. Julia de Burgos nasceu em 1914 em Porto Rico –  ou no Estado Livre Associado de Porto Rico. Isso quer dizer que o território pertence aos Estados Unidos, mas não é parte integrante da nação. Por isso, há divergências se ele estaria incluído no que chamamos América Latina. Aqui vamos considerar que sim – principalmente tendo em vista que Julia de Burgos era uma partidária da independência da ilha. Song of the Simple Truth: The Complete Poems of Julia de Burgos reúne ao todo mais de 200 poemas, na primeira edição bilingue espanhol-inglês. A descrição do livro, disponível só em inglês, chama a atenção para a inovação que a sua poesia traz, unindo um temperamento romântico com importantes temas políticos, em geral ligados a questões feministas. Tudo a ver com Rory, não?

Thais Marinho

Ainda são poucos os livros na minha estante e muitos na lista para serem lidos, mas a paixão por eles já está há muito tempo instalada. Hoje, cá estou, quase ex-jornalista, estudante de Letras, atualmente em terras hermanas, desbravando o argentinês e as literaturas hispano-americanas.