Uma aproximação a Borges

Abri pela primeira vez um livro de Jorge Luis Borges há alguns anos. Era uma obra da coleção Folha de Literatura Ibero-Americana, comprada junto com mais outras duas do mesmo selo em dia muito ensolarado e feliz em Paraty. Borges, que há 30 anos nos deixou para desvendar os mistérios do tempo e da (i)mortalidade, é um nome de peso. Não conhecer nada do escritor é quase uma falha de caráter para os amantes da literatura – por isso, naquele dia levei O Livro de Areia
. A experiência de leitura, em um contraste irônico com o dia da compra, foi tempestuosa e confusa. A obra, que ainda espera ser completamente desbravada, enfeita minha estante – em minha defesa, a edição é muito bonita. A quilômetros de distância do Brasil, é Cuentos completos
, um exemplar em espanhol com todos os livros de contos do autor sem atrativos estéticos e já mal tratado pelo uso, que me acompanha rabiscada e cheia de post-its por todos os lados. É aos poucos que Borges nos enreda em sua trama de histórias, filosofia e referências literárias e nos convida a percorrer as veredas labirínticas da sua obra.
Ao longo desses quatro meses que passei desvendando um pouco de Borges em terras argentinas, me deparei com inúmeras facetas do escritor. Em uma aula discutimos Borges e a literatura clássica. Em outra, vasculhamos as referências à tradição gauchesca argentina. Em uma terceira, o tema foi Dante e a A Divina Comédia. Isso sem falar dos temas que se repetem incessantemente nas páginas da sua obra – como a eternidade, a imortalidade, os labirintos, a “outredade” e os tão borgeanos espelhos. Todas essas facetas me encantam. Mas – e aqui falo mais como jornalista do que como estudante de Letras – me fascinam particularmente a objetividade e a ironia de Borges, de uma maneira geral, e especificamente o uso desses recursos em falsas resenhas literárias. Esse procedimento, que tensiona os limites entre realidade e ficção, está presente em toda sua obra – seja citando, em um conto e outro, livros e autores inexistentes junto de nomes reais, ou elaborando resenhas-contos, como em “Exame da obra de Herbert Quain” e “Pierre Menard, autor do Quixote”, contos publicados em Ficções
.
A primeira dessas resenhas falsas aparece em História da Eternidade, de 1936. É neste livro de ensaios que foi publicado pela primeira vez o texto “A aproximação a Almotásim”. Nessa época longínqua, sem internet e, por consequência, sem Google, Borges faz a resenha de um livro que teria sido publicado três anos antes em Mumbai pelo autor hindu Mir Bahadur Alí – obra e escritor inventados por Borges. A crítica, além de discutir a “primeira edição” da obra, aborda ainda uma segunda, que teria sido publicada pelo editor – real – inglês Victor Gollancz, e que contaria com um prefácio de uma escritora – também real – Dorothy L. Sayers. No texto, Borges detalha a história do livro, aponta críticas sobre a sua segunda edição, indica nomes de jornais indianos que teriam falado sobre o livro, copia trechos “originais” da obra em inglês para embasar suas críticas ou elogios e compara o livro de Bahadur com obras como Ulisses, de Joyce, e Odisséia, de Homero. Em cinco páginas, Borges inventa um romance inteiro. De forma irônica, joga com os limites tão difusos entre ficção e realidade.
Cinco anos depois, em 1941, o escritor publica O jardim de veredas que se bifurcam, um livro de contos, e inclui novamente “A aproximação a Almotásim” (nas edições atuais, o conto pode ser encontrado novamente em História da Eternidade). Sob o rótulo de conto, é mais fácil que o texto não seja lido como um ensaio, mas sim como ficção.
Corre o boato de que na época da primeira publicação um amigo de Borges solicitou ao editor inglês um exemplar da obra inexistente de Bahadur. Eu não culpo o amigo enganado, que cai na armadilha e procura o livro inventado. Eu procuraria também. Aposto que seria um livro incrível.
Thais Marinho
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